segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Lei do Chicote – Vivências do Mé Zóchi rural



Para além das Leis criadas pelos Estados continua a haver por esse mundo fora, muitos tipos de leis. E embora a sua aplicação geralmente não abone muito em favor do bem da sociedade como um todo, há que reconhecer o valor que essas leis têem para tornar o nosso planeta mais diverso e, por conseguinte, mais interessante. Ele há a lei do mais forte, a do desenrasca, a da selva, a do salve-se quem puder, as de Murphy, ... Enfim nunca mais acabam.


Aqui em São Tomé muitas destas leis ainda imperam sobre a Lei definida por Decreto. E no Mé Zóchi (o Distrito da ilha em que estou a morar e cujo nome resulta de uma corruptela de Manuel Jorge, um dos rios do Distrito) rural, mais do que todas é a lei do chicote que mantem a ordem, impedindo que se abra uma verdadeira caixa de Pandora sobre estas terras.


Talvez mesmo por serem terras abençoadas pela Natureza, a tentação da vida fácil é por aqui bastante forte! A água abunda, as terras são férteis e possui um clima propício para culturas, sobretudo café arábica (o mais caro) e hortícolas, o que lhe da uma vantagem sobre outras regiões do país em termos agrícolas.


Ora, para evitar que os ladrões se espalhem nestas bandas como uma praga, existem grupos populares que capturam, julgam e executam as penas sobre quem quer que seja apanhado a pôr a mão naquilo que não lhe pertença. Pode parecer um pouco arbitrário à primeira vista, mas não é. Existe um grupo de representantes a que é reconhecida a legitimidade de aplicar as penas e é feita uma investigação dos indícios do crime, um julgamento e só depois é aplicada a pena, consoante a gravidade dos factos comprovados. Aliás estes julgamentos mostram um espírito de união e uma capacidade de defesa da ordem, como é difícil encontrar noutras zonas de São Tomé.
Agora, já as penas essas são terrivelmente cruéis e, talvez reminiscências do tempo do esclavagismo, os ladrões são sujeitos ao chicote. E não é chicote a brincar. As chicotadas que saiem destes julgamentos populares são para não deixar o criminoso sair de lá a andar e, vezes há em que o chicote chega a matar o criminoso. Por isso imaginem a violência! É o que dá ter a vitima a servir de carrasco.

(Era suposto ter uma foto da Cascata de S. Nicolau aqui, mas a Internet embirrou com ela)
O medo do chicote é tal que se conta que, para fugir de um grupo de populares enraivecidos, houve um ladrão que saltou da cascata de S. Nicolau. Deve ter sido uma cena tipo “O Fugitivo”, mas asseguro que o fim da queda foi bem menos simpático que o do filme, porque mesmo que tenha caído na poça, esta não tem mais do que 2m de profundidade. Ao que dizem, aquele assim escapou-se ao chicote, mas nunca mais se atreveu a roubar...

Verdade é que o número de roubos depois destes julgamentos desce a pique. Pois, imagino que sim... E as pessoas que plantam nestes terrenos com o suor de todos os dias podem voltar a dormir descansadas, sem se preocuparem com aquilo que abandonaram nos campos para uma noite de descanço. E a própria polícia, talvez por reconhecer a legitimidade da justiça popular face a ineficiência da Justiça propriamente dita, não intervem no sentido de desmanchar estas perseguições. Aliás, já houve um chicoteado que acabou por morrer na Polícia, e nunca houve investigação para determinar quem foi o assassino!


Para além deste chicote de lei, o chicote faz mesmo parte do dia a dia do Mé Zóchi, como quando uma criança se porta mal e é ameaçada de chicote. Claro que este chicote não é bem o mesmo dos julgamentos, mas existe, e para além de ouvir falar dele, já o vi a ser aplicado e há que admitir que mesmo assim é bastante cruel. Pelo menos na perspectiva de um europeu...

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Samangugu

Elena, e como o prometido e devido, este post e em especial para ti...

Nao ha muitos animais em Sao Tome que sejam capazes de meter medo. Ate a cobra-preta, que tem uma mordedura potencialmente letal, tem um temperamento tao docil que dificilmente se pode dizer que e um animal aterrorizador. Ok, sempre que encontro uma no mato o meu coracao acelera, mas depois ela esta la na sua vida e eu passo-lhe ao lado e tambem vou a minha vida. Ja por um par de vezes quase pisava uma e nao foi isso que me tirou o sono...

Agora a Samangugu, a tarantula gigante de Sao Tome (tenho ideia que li em algum lado que e a segunda maior aranha do mundo), para alem da mordedura venenosa tem um comportamento verdadeiramente repreensivel. Eu tenho-me fartado de ver buracos que presumo que sejam delas (aparentemente trata-se de uma especie bastante comum), mas ate agora ainda nao tinha visto nenhuma. Como sao nocturnas e vivem em buracos bastante fundos nao e muito facil encontra-las, nem mesmo apesar do tamanho XXL!

Mas, farto de ouvir falar deste bicho, e de como havia em todo o lado, decidi pedir ao Ze (que trata do jardim la de casa) para me apanhar uma. Segundo ele, uma vez apanhou mais de cem para vender a um coleccionador. E foi dinheiro facil...
Ora aqui esta a beleza que ele me trouxe durante esta semana:
E para provar o mau feitio e o tamanho (la por tras esta uma moeda de 0.20€). Reparem so no tamanho daquelas queliceras. Cada vez que mexia no balde ela levanta-va as patas nesta posicao e atacava, fazendo um ruido ameacador. Ao que parece quando ela pica ja so sai com machim (catana)!

A samangugu definitivamente nao esta na minha lista de animais simpaticos, e nem ser endemica lhe vale. A partir de agora vou me lembrar dela sempre que andar descalco ou de chinelas pelo quintal!

quarta-feira, 12 de maio de 2010

O terceiro Kauiri (e outras bichezas)

Pois e, parece que a noticia de bolas por doninhas se esta a espalhar como fogo, e esta semana consegui deitar as minhas garras a mais um kauiri (ou doninha)!
Tambem ha duas semanas me trouxeram mais um musaranho (Crocidura thomensis). Infelizmente ja estava morto, mas assim ainda ha-de ser mais util para tentar perceber se esta especie e efectivamente distinta das suas congeneres continentais.
E pura especulacao (nao percebo muito de mamiferos), mas parece-me que este bicharoco e bem grandinho. Pelo menos a comparar com os musaranhos que conheco da Europa. Talves seja mais um gigantismo para Sao Tome?

O focinho deste animal e espetacular! Bem comprido, cheio de pelos e com um nariz muito estranho. Tem toda a pinta de orgao sensorial, por isso nao admira que tenha aqueles olhinhos de toupeira...

E devo andar mesmo cheio de sorte, nao so pelos bicharocos que me estao a trazer, mas tambem pelos que eu encontro (sim, tambem consigo sozinho...). Esta osga (que pertence ao genero Hemidactylus, mas ainda nao tenho a certeza do nome exacto da especie) e outros dos endemismos gigantes de Sao Tome. Nao sei se e muito grande para o genero, mas para o meu conceito de osga ja e bem grande. Maior que um palmo!O ano passado havia uma que, volta nao volta, me entrava pelo quart a dentro, mas (ela que me desculpa) nao era tao gira como esta das fotografias! Confiante da sua camuflagem, ela deixou-me fazer umas boas macros. Encontrei-a no tronco de um Pau-fede (Celtis sp.), numa plantacao de sombra na zona de Monte Cafe. Nao e gira?

Finalmente, tambem ha que reconhecer que as vezes sao os bichos que me encontram. Este milipede engracado, mas muito pequenino, entrou-me pela casa adentro!
Este escaravelho gigantesco veio a voar e pousou-me em cheio na orelha, para o panico de toda a gente que estava a minha volta. Aparentemente morde que se farta e tive que sorte em nao ter sido mordido. De facto mandibulas nao lhe faltam... Tive que convencer a multidao para poupar a pobre criatura e ela la voltou a sua atarefada vida de bicho.

No Obo

Durante o ultimo mes tenho andado bastante atarefado a tentar acabar a caracterizacao dos pontos para o meu trabalho. E um trabalho bastante duro. O dia inteiro a medir, contar e identificar arvores pela ilha quase toda, mas ha que reconhecer as vantagens. E uma delas e, com certeza a de poder visitar a ilha de Sao Tome em regioes onde quase ninguem vai (excepcao feita aos cacadores, a uma mao cheia de turistas e cientistas muito aventureiros e, em alguns sitios tambem aos vinhanteiros e madeireiros). Essas zonas mais inospitas estao muitas vezes repletas por uma fantastica floresta, a que aqui se chama de Obo. E e aqui que vivem alguns dos seres que vao trazendo cientistas da todo o mundo a estas paragens, porque sao endemicos, unicos no mundo!
Do Obo, que so por si ja quase so existe em zonas bastante ingremes, surgem muitas vezes agulhas vulcanicas. Picos subitos, que testemunham a origem vulcanica da ilha e que dao uma ambiencia muito particular a esta floresta. Na imagem: em primeiro plano o Rio Lemba, a menos de 100m de altitude; o pico mais proximo nao tem nome, mas dista uns 1700m do sio onde foi tirada a foto e tem 435m de altitude; ao fundo o Pico Zagaia dista quase 8km e atinge os 942m de altitude.
Em 2008 um grupo de micologistas da California Academy of Sciences, fez uma amostragem dos fungos existentes no pais. Estava listada uma mao cheia de especies para Sao Tome e nenhuma para o Principe. No final estes cientistas sairam daqui com umas duas centenas de especies, uma delas era nova para a ciencia e foi recentemente eleita uma das 10 especies do ano (ver o blog das expedicoes nos meus links). E existem muitas que concerteza permanecerao por descrever por muito mais tempo...

E mesmo as especies que ja foram descritas vao pregando as suas partidas. Em Sao Tome sao reconhecidas duas especies de Hyperolius, das quais podem encontrar fotos no blog das expedicoes da CAS. Agora digam-me a qual das duas pertencem estas criaturinhas que eu encontrei a reproduzirem-se numa zona de “floresta primaria” a 400m de altitude? E ja agora tambem a que aparece em monachus.blogspot.com! Eu consigo perceber qual das duas pode ser...